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Tecnologia, Gênero e Política

Blog da Código Não Binário e Núcleo Digital

red and blue pill

O movimento “red pill” na verdade é blue e serve de viagra para a masculinidade tóxica

A ameaça de Thiago Schutz, conhecido como “Red Pill” ou “Coach da Campari”, em atirar na atriz Livia La Gatto após uma sátira, tem ocupado certo espaço no debate público, já cheio de toxicidade masculina com os casos de prisão e julgamento de Robinho e Daniel Alves por estupro, além dos incessantes e recorrentes casos de ataque à pessoas de gêneros e sexualidades dissidentes.

Esse texto trata o caso da perspectiva de uma pessoa que já foi (preferimos chamar de “performou como”) homem cis hétero e se descobriu uma pessoa não-binária, trans/travesty, “fora da matrix” (de esquerda, que valoriza a ciência, LGBTQIA+ etc) e programadora de software (como o Neo, protagonista do filme).

The Matrix é um exemplo de um filme que se tornou um ícone cultural que tem no centro de sua trama a pílula vermelha e azul, como alegoria da escolha por continuar no sistema (cis-tema) e ser um pacato cidadão, ou, sair dele, se tornar um subersivo, e arcar com as consequências.

poster the matrix
Poster do filme – Imagem de Pimkie

O movimento “red pill”, de pessoas com problema de interpretação de texto, inverte o sentido – ou pior, desconhece a realidade que vive. Esse movimento promove a falsa ideia de que os homens são vítimas da sociedade e que precisam “acordar” para a verdadeira natureza das mulheres. Essa visão vitimista, irreal, reducionista e estereotipada das relações de gênero é prejudicial para além das mulheres, alvo das violências, e prejudicial também, para além dos homens cis héteros que se identificam como vítimas. Como ficou comprovada pela própria atitude de um de seus coaches, essa ideia é a velha masculinidade tóxica, um problema social que se manifesta em comportamentos violentos, sexistas e discriminatórios. 

Cena do filme com a oferta das pílulas por Morpheus – Imagem de n0cturbulous

Como observado por Silvia Federici em sua obra “O Calibã e a Bruxa”, a opressão de gênero é parte integrante do sistema capitalista patriarcal que surgiu no início da modernidade. A autora argumenta que a caça às “bruxas” na Europa do século XVI foi uma das primeiras formas organizadas de opressão das mulheres, usada para subjugar e controlar o corpo das mulheres e, assim, proteger a instituição da família e o controle dos homens sobre a reprodução. Essa opressão de gênero, portanto, tem raízes profundas no capitalismo patriarcal e é uma das formas fundamentais pelas quais as sociedades são divididas e controladas. É crucial entender essas raízes históricas da opressão de gênero para enfrentar de forma eficaz o movimento “red pill” (que na verdade seria blue pill, segundo The Matrix) e a masculinidade tóxica que ele promove.

É importante reconhecer que a cultura popular tem um papel significativo na construção de nossas visões de gênero. As diretoras do filme, as irmãs Wachowski, realizaram transição de gênero (que nós, trans, estamos aprendendo a nomear melhor como afirmação de gênero) durante as últimas décadas e relataram nesse vídeo no YouTube que o filme é uma alegoria sobre a transgeneridade:

Arrisco dizer, da minha perspectiva trans e subversiva, como a delas, que o roteiro é sobre a saída do sistema como um todo, o que passa necessariamente pelo combate a cisheteronormatividade (ideia de que o jeito certo de existir é ser uma pessoa heterossexual, cisgênero, etc.) e binarismo de gênero (ideia de que existem apenas a mulher/feminino e o homem/masculino). É uma história sobre a libertação pessoal, coletiva e de descoberta de novas dimensões de vida, um verdadeiro renascimento – tanto que nós, trans, costumamos até celebrar nosso aniversário de afirmação.

Primeiro, é fundamental reconhecer a complexidade das identidades de gênero. O Manifesto Ciborgue de Donna Haraway propõe uma perspectiva ciberfeminista, que aborda a conexão entre humanos e máquinas como uma forma de transcender as fronteiras binárias e as hierarquias opressivas. Haraway propõe a ideia de que somos todos ciborgues, seres híbridos que misturam a biologia, a tecnologia e a cultura, e que essa condição pode ser uma fonte de liberdade e de resistência.

Outra autora fundamental para o debate sobre gênero e sexualidade é Judith Butler. Em sua obra “Gender Trouble”, ela desconstrói a noção de que o gênero é uma essência natural e imutável e argumenta que ele é, na verdade, uma construção social e cultural. Butler também enfatiza a importância da performance de gênero e como ela é influenciada pelo contexto social e histórico. Dessa forma, a masculinidade tóxica e o binarismo de gênero são vistos como construções sociais prejudiciais que podem e devem ser desconstruídas.

Em sua última obra “Dysphoria Mundi”, Paul B. Preciado (homem trans e dissidente de gênero), fala sobre o conceito de “sistema petro-sexo-racial” e descreve como as normas de gênero e sexualidade são reforçadas por meio do poder econômico e do controle dos recursos naturais, como o petróleo. Essa visão é fundamental para entender a forma como a masculinidade tóxica e o binarismo de gênero são reforçadas em nossa sociedade, e como a luta por uma epistemologia de gênero deve incluir uma análise das relações de poder econômico e político. A crítica à cisheteronormatividade e ao binarismo de gênero deve ser entendida como parte de uma luta mais ampla contra a opressão e a exploração, que inclui não apenas questões de gênero e sexualidade, mas também raça, classe e outras formas de opressão. A teoria de Preciado é fundamental para entendermos como esses diferentes sistemas de opressão estão interconectados e como podemos trabalhar juntos para superá-los.

Preciado aborda a ideia de que a disforia de gênero (conhecida popularmente como doença de pessoas que passam por processo de afirmação de gênero) não é uma patologia individual, mas sim um sintoma da condição de alienação de toda a humanidade, em um mundo que se baseia em identidades e papéis de gênero binários e fixos. Ele argumenta que a disforia de gênero é uma forma de resistência e que a solução é a descolonização da identidade e a criação de novas formas de subjetividade, que ultrapassem a lógica da reprodução heterossexual. O autor discute o impacto das tecnologias digitais na construção do gênero e na experiência da disforia de gênero. Preciado argumenta que a tecnologia pode ser uma ferramenta para transcender as limitações impostas pelo sistema binário de gênero, mas também pode ser usada para perpetuar a opressão. Ele também desafia a noção de que a afirmação de gênero é uma simples busca pela harmonia entre o corpo e a identidade, mas sim um processo político e cultural que questiona as normas de gênero impostas pelo sistema.

Além disso, Preciado argumenta que as normas de gênero e sexualidade são criadas e perpetuadas por meio do controle dos corpos e da produção de conhecimento sobre esses corpos. A epistemologia de gênero, portanto, deve incluir uma análise crítica das práticas de produção de conhecimento e das estruturas de poder que as sustentam. Isso significa questionar os pressupostos epistemológicos sobre os quais as teorias de gênero e sexualidade são construídas e buscar novas formas de conhecimento que levem em conta a diversidade e a complexidade da experiência humana. Nesse sentido, a teoria de Preciado é importante não apenas como uma crítica à masculinidade tóxica e ao binarismo de gênero, mas como uma crítica mais ampla ao sistema de produção de conhecimento que sustenta essas normas.

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Diálogo do filme “A Matrix está por todo lugar. Está toda ao nosso redor.” – Imagem de Nuno Luciano.

O Transfeminismo de Letícia Nascimento e as pesquisas de Berenice Bento sobre travestilidades e transexualidades são outras perspectivas fundamentais para entender a diversidade das experiências de gênero. O Transfeminismo busca compreender e incluir as vozes e experiências das pessoas trans nas lutas feministas e LGBTQIA+, reconhecendo que a opressão de gênero afeta de forma diferente as pessoas em diferentes posições de poder. Já as pesquisas de Berenice Bento buscam compreender as realidades das pessoas trans e travestis no Brasil e contribuem para a luta por seus direitos e reconhecimento.

A masculinidade tóxica e o movimento “red pill” são expressões da cisheteronormatividade e do binarismo de gênero que são prejudiciais tanto para homens quanto para mulheres e para todas as pessoas que não se encaixam nessas categorias. Precisamos superar essas normas opressivas e abraçar uma visão mais ampla e inclusiva da diversidade de gênero e sexualidade. Isso pode ser feito através da educação e do diálogo, mas também através da ação política e cultural para desafiar as estruturas sociais que perpetuam a opressão.

O Manifesto Ciborgue, o transfeminismo, as obras de Judith Butler e de Paul B. Preciado são exemplos de teorias que nos fornecem ferramentas críticas para desconstruir as normas de gênero e nos ajudam a imaginar novas possibilidades para a vida e a identidade. Devemos partir dessas teorias e trabalhar para implementá-las em nossas vidas diárias e em nossas práticas políticas e culturais. Isso implica em questionar nossas próprias noções de gênero e sexualidade, bem como as normas sociais e culturais que nos cercam.

É importante também lembrar que a luta pela libertação de gênero e sexualidade é uma luta coletiva, que envolve a solidariedade entre as pessoas e grupos marginalizados. Devemos buscar alianças e coalizões entre pessoas LGBT+, feministas, negras, indígenas, entre outras, para desafiar as opressões interseccionais e construir um mundo mais justo e igualitário para todas as pessoas. Nesse sentido, é importante valorizar e apoiar as iniciativas de grupos e organizações que lutam pelos direitos das minorias sexuais e de gênero, bem como de pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam ao estudo dessas questões. O feminismo interseccional, o transfeminismo e a teoria queer são algumas das correntes que têm contribuído significativamente para a compreensão desses temas e para o avanço das políticas públicas em prol da diversidade sexual e de gênero.

A masculinidade tóxica e o movimento “red pill” são expressões de uma cultura que privilegia a dominação e a violência em detrimento da igualdade e do respeito mútuo. É preciso superar essa cultura por meio de um esforço coletivo de desconstrução e reconstrução de nossas identidades e relações. É fundamental reconhecer que a superação da cisheteronormatividade, do binarismo de gênero e masculinidade tóxica não é um processo fácil e que demanda um esforço contínuo de todas as pessoas envolvidas. Não se trata apenas de desconstruir ideias preconcebidas, mas também de construir novas formas de se relacionar, de se entender e de se expressar. Isso envolve repensar e redefinir nossos próprios conceitos de identidade, sexualidade e gênero, e também de acolher e respeitar as diferentes formas de expressão dessas identidades.


Veronyka Gimenes é uma pessoa não-binária e travesty. Seu trabalho navega entre programação, gestão, design e ativismo. Especializada em Desenvolvimento de Software, Globalização e Cultura, e Diversidade. Com mais de 15 anos de experiência na área, já trabalhou com IBM, Prefeitura de São Paulo, Banco Mundial (com Governo do Ceará e Rio Grande do Sul), Bloomberg Philanthropies, Ministério da Cultura do Brasil, Campanha Presidencial Lula 2022 e Haddad 2018, Partido Rede, OAB SP entre outros. Atuou em projetos no setor Legislativo, Executivo e Judiciário e já coordenou campanhas políticas. Já palestrou no TEDxUFRJ, Democracy Lab (MediaLab-Prado, Madrid), MIS – Museu da Imagem e do Som, Red Bull Station, Prefeitura de São Paulo, IAB-SP e InovaDay/iGovSP e FLIP (Casa Queer).

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